Por: Gabriel Montenegro, psicólogo e professor
Em 2013, o dicionário Oxford elegeu “selfie” como a palavra do ano, marcando uma era de autorretratos digitais e exposição individual. A princípio, uma simples tendência tecnológica, mas que, uma década depois, revela um efeito profundo na forma como interagimos, ou melhor, na forma como deixamos de interagir.
Observamos hoje uma nova geração de crianças que têm dificuldade em estabelecer diálogos, fruto de um cenário onde a comunicação se tornou um espetáculo individual. O fenômeno dos youtubers, em especial aqueles que se especializam em vídeos do tipo “selfie”, reforça esse padrão. Eles não conversam, não argumentam, não interagem. Apenas narram: “Agora estou abrindo esse pacote”, “Olha só o que aconteceu!”, “Vou mostrar para vocês…” A comunicação se limita a um monólogo, onde a troca de ideias dá lugar a uma simples descrição de ações. E as crianças, principais espectadoras desse modelo, reproduzem-no no cotidiano.
A psicanálise já diferenciava bem os conceitos de “self” e “myself”. O primeiro, “self”, representa uma consciência do eu que se constrói em relação ao outro, um sentido de identidade que se desenvolve pelo contato, pelo espelho social. Já o “myself” enfatiza o eu isolado, o olhar voltado para dentro, para uma identidade que não precisa do outro para se afirmar. Esse deslocamento entre um “eu” que se constrói na relação e um “eu” que se exalta sozinho tem sido a marca das novas gerações.
É aqui que entra a distinção entre individualidade e individualismo. A individualidade é a construção do sujeito dentro de um contexto social, a possibilidade de ser autêntico sem perder a capacidade de se conectar. Já o individualismo, que hoje é incentivado por redes sociais e por modelos de interação baseados no monólogo, se torna um culto ao próprio ego, onde a necessidade de validação sobrepõe-se à capacidade de escutar.
Crianças que apenas narram e não dialogam correm o risco de crescer sem aprender o real significado da troca. Sem a experiência do contraditório, do questionamento, da escuta ativa, tornam-se adultos pouco preparados para lidar com a complexidade das relações humanas. Mais do que nunca, precisamos resgatar a arte da conversa, da argumentação e do olhar para o outro, para que a comunicação não se perca na superficialidade de um vídeo selfie.
Recentemente escrevi para essa coluna sobre “A influência do fútil”, os conceitos aqui escritos se completam lá também. Leia aqui e reflita, ótima metade da semana para você caro leitor(a)!