O Sete de Setembro é conhecido como o marco da independência do Brasil, quando Dom Pedro I proclamou a separação do país de Portugal em 1822. No entanto, conforme discutido pelo historiador O Parla, que promove atividades culturais e visitas guiadas a importantes museus de São Paulo, a data é apenas um fragmento de um processo complexo e multifacetado. Em entrevista, Hildon Vital de Melo, filósofo e especialista em história, destaca que a independência vai muito além dessa data simbólica, sendo composta por movimentos e contextos históricos que envolvem outras regiões do Brasil, como a Bahia.
Segundo Melo, um exemplo é o 2 de julho de 1823, data que marca a retirada das últimas tropas portuguesas da Bahia, simbolizando o fim do domínio colonial naquela região. “A independência não pode ser vista apenas como um evento único no Sete de Setembro, mas como uma série de insurreições que ocorreram em diferentes partes do país, como a Revolução Pernambucana de 1817 e a Inconfidência Mineira, movimentos que já contestavam o poder de Portugal”, afirma o historiador. Ele defende que o conceito de independência deve ser plural, refletindo as diversas lutas por liberdade e autonomia que surgiram em diferentes contextos e regiões do Brasil.
Na entrevista, o filósofo também explora a complexidade das figuras históricas associadas à independência, com destaque para Dom Pedro I. “A imagem que temos de Dom Pedro I é polifônica, moldada por diferentes perspectivas e interpretações ao longo da história. Após a proclamação da República, por exemplo, ele foi retratado de maneira crítica, como um monarca atrasado e violento”, explica. Ele ressalta, no entanto, que Dom Pedro desempenhou um papel importante no processo, embora a construção de sua imagem tenha sido influenciada por várias correntes políticas.
Sobre as representações da independência, Melo menciona o famoso quadro Independência ou Morte, de Pedro Américo, exposto no Museu do Ipiranga. Essa obra de arte, que retrata Dom Pedro em um cavalo imponente ao lado de suas tropas nas margens do Rio Ipiranga, é uma idealização épica do momento. “Pedro Américo tinha plena consciência de que estava criando uma imagem simbólica da pátria e da independência brasileira”, comenta, ressaltando que o próprio pintor se incluiu na obra, algo comum entre artistas da época.
Contudo, a realidade do Sete de Setembro de 1822 era bem diferente da grandiosidade mostrada no quadro. De acordo com o historiador Laurentino Gomes, Dom Pedro não estava montado em um cavalo majestoso, mas em uma simples mula, vestindo roupas civis e não trajes militares. Além disso, ele sofria com uma forte indisposição gastrointestinal, que o obrigou a interromper a viagem diversas vezes. “Se pudéssemos voltar àquele dia, a simplicidade da cena nos surpreenderia. São Paulo, naquela época, era uma província pobre e sem o brilho de outras regiões mais prósperas, como Rio de Janeiro, Recife ou Salvador”, afirma o filósofo.
Quando a independência é vista sob o prisma da Bahia, a narrativa ganha um tom de heroísmo e resistência. Melo destaca figuras femininas importantes, como a freira Joana Angélica, que tentou impedir a invasão de soldados portugueses no convento da Lapa, e Maria Quitéria, uma mulher que se disfarçou de homem para lutar nas batalhas de independência. “A história dessas mulheres é muitas vezes esquecida, mas elas foram fundamentais nas lutas que ocorreram na Bahia”, observa.
O filósofo também aponta o impacto de movimentos populares, como a participação de negros, indígenas e voluntários na Bahia, que lutaram contra as forças coloniais sem contar com o suporte de um exército brasileiro formal. “O exército brasileiro não era uma força regular até o fim do processo de independência. Foi o esforço desses grupos que garantiu a vitória no Norte e Nordeste”, comenta. Essas contribuições voluntárias ajudaram a consolidar o processo de independência em outras regiões.
Outro ponto relevante é o legado da independência brasileira. “Embora o Brasil tenha rompido com Portugal, a independência não resultou em uma ruptura completa com o sistema de poder que sustentava o país”, argumenta Melo. Diferente de outras nações da América Latina, que aboliram a escravidão e se tornaram repúblicas, o Brasil manteve a monarquia e a escravidão até o final do século XIX. “A manutenção da escravidão é uma das cicatrizes mais profundas desse período. A independência brasileira, de certo modo, serviu para perpetuar o domínio das elites agrárias e manter o sistema escravocrata”, reflete.
Para o filósofo, a história da independência do Brasil precisa ser revisitada e discutida a partir de múltiplos pontos de vista. “É uma história rica e cheia de nuances, que vai muito além do Grito do Ipiranga”, conclui. Através de suas atividades educacionais, ele busca justamente ampliar esse debate, convidando o público a refletir sobre o que significa, de fato, ser independente.